Decisão de Flávio Dino coloca o Brasil em águas nunca navegadas

 



Com base no conteúdo apresentado, podemos refletir sobre as implicações e complexidades da decisão do Ministro Flávio Dino do Supremo Tribunal Federal, que proibiu empresas e instituições financeiras brasileiras de cumprir sanções estrangeiras sem autorização expressa da justiça brasileira, mais precisamente do STF. Esta medida, tomada em 18 de agosto de 2025, é vista como um marco sem precedentes nas relações entre Brasil e Estados Unidos, desafiando o paradigma de que "quando Washington pressiona, o mundo cede".


A Verdadeira Mecânica das Sanções Americanas e a Decisão de Dino


Uma confusão fundamental no debate público, conforme o vídeo, reside na compreensão de como a Lei Magnitsky americana opera. A decisão de Dino estabelece que leis estrangeiras não produzem efeitos automáticos no Brasil sem homologação judicial, o que, até certo ponto, já é previsto pela legislação brasileira. No entanto, o ponto crucial é que a Lei Magnitsky não funciona como uma imposição direta de leis americanas em território estrangeiro.


Em vez disso, a Lei Magnitsky é uma legislação americana que regula o que empresas e cidadãos americanos podem fazer, proibindo transações que envolvam bens ou interesses de pessoas sancionadas. Ela não ordena que bancos brasileiros façam algo; ela simplesmente proíbe empresas americanas de fazerem negócios com pessoas sancionadas. O poder da Lei Magnitsky deriva do fato de que empresas brasileiras, por decisão própria, optam por seguir essas restrições para preservar suas relações comerciais com os Estados Unidos.


Quando um banco brasileiro, por exemplo, decide não oferecer serviços a uma pessoa sancionada (como Alexandre de Moraes, no exemplo dado), ele não está cumprindo uma lei estrangeira imposta ao Brasil. Ele está tomando uma decisão comercial para preservar suas operações americanas e seu relacionamento com outras instituições nos Estados Unidos. A lista de Cidadãos Especialmente Designados e Pessoas Bloqueadas (SDN List), gerenciada pela Agência de Controle de Ativos Estrangeiros dos Estados Unidos (OFAC), é o mecanismo pelo qual as empresas americanas identificam quem não pode ser transacionado. Empresas que desobedecem a essas regras podem enfrentar multas milionárias e até perder a operação nos EUA. É este risco econômico que leva empresas globalmente a implementar voluntariamente as restrições americanas.


Portanto, do ponto de vista jurídico, a decisão de Dino cria uma proteção teórica contra algo que, tecnicamente, não existe como imposição legal direta. Há uma desconexão entre a proteção jurídica oferecida pela decisão de Dino e a realidade prática de como as sanções americanas operam no mundo.


O Dilema Comercial Inalterado


A decisão do Ministro Flávio Dino, embora importante para a afirmação da soberania jurídica brasileira, possui uma eficácia prática que pode ser extremamente limitada. Ela determina que leis estrangeiras não têm validade no Brasil sem homologação, mas essa proteção não aborda a mecânica real através da qual as sanções americanas operam, que é a criação de incentivos e custos econômicos.


Um banco brasileiro com operações nos Estados Unidos, por exemplo, mesmo com a proteção legal de Dino para manter relações com uma pessoa sancionada, ainda enfrentará a possibilidade de sanções do governo americano em suas operações nos EUA, resultando em multas vultosas (bilhões de dólares) ou a perda de licenças operacionais. A prática demonstra que qualquer empresa com conexão comercial relevante com os Estados Unidos tende a negar serviços a pessoas sancionadas, não por imposição legal direta, mas por um cálculo comercial de risco e benefício.


Isso gera um dilema jurídico interessante, mas não resolve o dilema comercial fundamental. As empresas brasileiras têm uma decisão judicial que permite a relação com sancionados, mas os custos econômicos de fazê-lo permanecem inalterados. A decisão de Dino oferece uma "saída legal", mas não elimina os custos comerciais, funcionando como uma declaração de soberania simbólica com eficácia prática potencialmente limitada.


Cenários Práticos e Consequências Mais Graves


A análise técnica sugere que as empresas brasileiras podem responder a essa nova realidade de diversas formas:

   Conformidade Seletiva Baseada em Risco: Bancos com operações substanciais nos EUA podem continuar seguindo as sanções americanas, argumentando que o fazem por decisão comercial autônoma. Empresas com operações limitadas nos EUA podem usar a decisão de Dino como proteção.

   Fragmentação do Sistema Financeiro: Pode surgir uma divisão entre instituições financeiras que priorizam as relações com os EUA e bancos, especialmente estatais como o Banco do Brasil, que seguem rigorosamente a decisão brasileira, mesmo que isso custe o relacionamento com os americanos. Isso criaria um sistema financeiro doméstico com "duas velocidades".


A decisão de Dino pode funcionar melhor para empresas e serviços que operam primariamente no mercado doméstico brasileiro e não têm relação com os Estados Unidos. No entanto, para instituições com operações internacionais significativas, a proteção oferecida pode ser limitada pelos custos de implementação.


A consequência mais grave surge se o Brasil, através de um de seus poderes como o STF, insistir em "blindar" explicitamente um indivíduo sancionado, obrigando bancos e empresas a manter relações comerciais com ele. Os Estados Unidos poderiam interpretar isso não apenas como um ato de soberania nacional, mas como um movimento institucional de proteção a um violador de direitos humanos. A lógica da Lei Magnitsky pune não apenas indivíduos, mas também qualquer Estado que se posicione contra a aplicação das sanções.


Se isso ocorrer, o risco imediato é a extensão das chamadas sanções secundárias. Isso significa que:

   Bancos brasileiros que, amparados pela decisão do STF, continuarem operando contas de um sancionado, poderiam ser excluídos do sistema financeiro internacional baseado no dólar (similar ao que aconteceu com bancos russos após a invasão da Ucrânia). Sem acesso ao sistema SWIFT e relações bancárias com instituições americanas, seriam paralisados em suas operações internacionais.

   Empresas exportadoras brasileiras, mesmo sem relação direta com o indivíduo sancionado, poderiam ser vistas como entidades de risco pelos EUA e seus aliados. Isso poderia levar a contratos questionados, embarques bloqueados, proibição legal para multinacionais americanas de contratar fornecedores brasileiros, e recusa de seguradoras internacionais em emitir apólices para cargas do Brasil, encarecendo e inviabilizando o comércio exterior. Isso resultaria em um isolamento econômico gradual.

   Investidores internacionais poderiam iniciar uma retirada em massa de capitais, gerando desvalorização cambial, inflação e instabilidade no mercado de crédito. A percepção do Brasil como um país que protege um sancionado por violações de direitos humanos já seria suficiente para disparar alertas em agências de rating, reduzindo a nota de crédito soberano e encarecendo financiamentos internacionais.


Isolamento Multilateral e Futuro das Relações


Além do atrito bilateral com os EUA, o Brasil se colocaria em rota de colisão com todo o bloco ocidental, já que Canadá, Reino Unido e União Europeia possuem legislações semelhantes à Lei Magnitsky. Bancos europeus também poderiam cortar relações, criando um efeito em cascata de isolamento multilateral.


Em essência, a decisão de Flávio Dino, embora uma afirmação da soberania jurídica brasileira, tem sua eficácia prática condicionada à forma como empresas e instituições brasileiras irão navegar entre a proteção legal doméstica e os custos comerciais internacionais. Historicamente, declarações de soberania financeira são mais eficazes quando acompanhadas por alternativas econômicas viáveis. O sucesso da medida dependerá da capacidade do Brasil de oferecer sistemas financeiros e comerciais que permitam às empresas operar com autonomia real em relação ao sistema americano, o que, segundo a análise, só seria possível com uma aliança cada vez maior com blocos econômicos como o BRICS, que antagonizam os Estados Unidos.


A decisão de Flávio Dino é, portanto, um capítulo significativo na complexa relação entre Brasil e Estados Unidos, indicando um crescente distanciamento institucional e político do Brasil em relação aos EUA. As consequências completas desse movimento só poderão ser observadas com o tempo.

Tags