Lilith: Uma Reflexão sobre a Evolução de um Ícone Antigo

 


O vídeo "Quem é Lilith, 'a primeira mulher de Adão'?" do canal "Estranha História" nos convida a uma jornada fascinante pela história e pelas múltiplas interpretações de Lilith, uma figura que tem gerado interesse em contextos tão diversos quanto escolas dominicais, coletivos feministas e departamentos acadêmicos de Assiriologia. Acompanhando essa trajetória, podemos refletir sobre como um mito antigo pode ser transformado e ressignificado ao longo do tempo, adaptando-se a novas culturas e ideologias.

As Duas Criações e a Gênese de uma Questão

A investigação sobre Lilith tem um ponto de partida intrigante na própria Bíblia, mais especificamente no livro de Gênesis. O primeiro capítulo descreve a criação do homem e da mulher "à imagem de Deus" e em aparente simultaneidade: "homem e mulher ele os criou". Contudo, o segundo capítulo apresenta uma narrativa diferente, onde o homem (Adão) é criado primeiro, e a mulher é formada a partir de uma de suas costelas para ser sua "auxiliar".

Essa aparente contradição levou intérpretes antigos a uma solução engenhosa: se Adão e Eva são claramente nomeados na segunda história, a primeira poderia se referir a Adão e a outra mulher, sua "primeira mulher", que não era "osso dos seus ossos e carne da sua carne". Esta mulher inominada se tornou, para alguns, Lilith.

A Lilit Bíblica e Suas Raízes Mesopotâmicas

Embora o nome Lilith só apareça uma única vez na Bíblia hebraica, no livro de Isaías 34, em uma profecia contra Edom, sua menção é reveladora. Curiosamente, muitas traduções da Bíblia substituem "Lilith" por termos como "animais noturnos" ou "bruxa do deserto". No entanto, traduções antigas, como a Septuaginta (grego) que a traduz como "on kentauros" (centauro) e a Vulgata (latim) que a transforma em "lâmia" (criatura sedutora e devoradora de bebês), já apontam para as características que se tornariam centrais na figura de Lilith: sedução e ataque a bebês.

Para compreender o sentido original por trás dessa figura, precisamos olhar para a Mesopotâmia Antiga, de onde o mito de Lilith realmente se origina. Desde o Terceiro Milênio antes de Cristo, textos mesopotâmicos mencionam "lilītu" (e o masculino "līlû") como espíritos ou monstros do deserto responsáveis por doenças, delírios e morte. O poema Gilgamesh e a Árvore Huluppu, por exemplo, narra como uma "lilith" fez sua casa no tronco de uma árvore sagrada antes de ser expulsa por Gilgamesh para o deserto, seu lar a partir de então.

A presença de Lilith no imaginário mesopotâmico é atestada também por amuletos e objetos usados para afastar maus espíritos, como uma tabuinha fenícia-cananeia que invoca a fuga da "Lili" para proteger mães e bebês. A representação visual de uma "esfinge alada" ou o famoso relevo de Burney (Rainha da Noite), embora sua identidade seja debatida, também podem estar ligados a essa figura. A constante presença de Lilith na cultura mesopotâmica garantiu sua entrada e assimilação nas culturas vizinhas, incluindo a judaica.

Lilith na Tradição Judaica: A Mulher Que Não Se Curvou

A narrativa mais antiga que estabelece Lilith como a primeira mulher de Adão surge em um texto judaico medieval, o Alfabeto de Ben Sira. Segundo este texto, Deus criou Adão e Lilith do mesmo solo, em condições de igualdade. No entanto, eles logo entraram em conflito sobre a posição sexual, com Lilith se recusando a ficar por baixo, afirmando: "Nós dois somos iguais, já que ambos viemos da terra". A recusa de ambos em ceder levou Lilith a pronunciar o nome sagrado de Deus e fugir para o Mar Vermelho, onde se uniu a espíritos malignos e teve milhares de filhos.

Adão, então, clamou a Deus, que enviou três anjos – Sanoi, Sansanoi e Samangelof – para trazê-la de volta. Lilith, porém, recusou-se, mesmo sob ameaça de perder cem filhos por dia. Ela declarou que sua natureza era causar doenças em bebês, tendo domínio sobre meninos por sete dias (antes da circuncisão) e meninas por vinte dias. Contudo, ela jurou que pouparia qualquer bebê se visse os nomes dos três anjos.

Essa rica narrativa medieval não era meramente uma história; ela servia para explicar costumes judaicos como a criação de amuletos com os nomes desses anjos para proteger recém-nascidos. Outras práticas para afastar Lilith incluíam rabinos desaconselhando homens a dormir sozinhos para evitar sua sedução noturna (associada a emissões sexuais e, na Europa medieval, a súcubos e íncubos), e a produção de vasilhas de encantamento com "fórmulas de divórcio" para expulsar Lilith de lares.

De Demônio a Ícone Feminista: Uma Releitura Moderna

A figura de Lilith, historicamente associada à mortalidade infantil e a tabus sexuais, passou por uma notável transformação em tempos mais recentes, tornando-se um ícone positivo para alguns grupos. Essa ressignificação ocorreu principalmente dentro do feminismo judaico, um movimento que emergiu na "segunda onda" do feminismo (anos 60 e 70).

Para esse movimento, a história de uma mulher criada em igualdade com o homem, que se recusa à submissão e opta pela liberdade, era extremamente poderosa e ressonante. Em 1972, a teóloga feminista Judith Plaskow publicou uma reinterpretação do Alfabeto de Ben Sira, na qual Lilith não era uma entidade maligna, mas sim uma mulher forte que havia escapado da opressão de Adão. Segundo Plaskow, a demonização de Lilith era, na verdade, uma campanha difamatória masculina, transformando-a em promíscua e devoradora de crianças para justificar sua fuga.

A partir dessa positivação da figura de Lilith, foi criada, em 1976, uma revista feminista judaica que leva seu nome, Lilith, e que existe até hoje.

Conclusão

A história de Lilith é um testemunho da flexibilidade e resiliência dos mitos. De um espírito mesopotâmico causador de males a uma demônia na tradição judaica, e finalmente a um símbolo de força e independência no feminismo moderno, Lilith demonstra como as narrativas são continuamente moldadas e reinterpretadas para atender às necessidades culturais, sociais e ideológicas de cada época. Sua jornada através das eras nos faz refletir sobre como as "primeiras histórias" são contadas e recontadas, e como uma figura marginalizada pode emergir para representar aspirações de igualdade e autonomia.