Artigo para Reflexão: O Legado do Governo Sarney – Entre a Promessa e o Caos na Redemocratização Brasileira
O período do governo de José Sarney (1985-1990) é um capítulo fundamental e complexo na história recente do Brasil, marcando a transição da ditadura militar para a democracia e enfrentando o gigantesco desafio de estabilizar uma economia assolada pela hiperinflação. Analisar essa época nos convida a refletir sobre a resiliência da sociedade brasileira e os intrincados caminhos da construção democrática.
A Ascensão Inesperada e o Desafio da Inflação
José Sarney, originalmente um apoiador do regime militar, tornou-se o primeiro presidente civil após 21 anos de ditadura de forma inesperada, após a morte de Tancredo Neves às vésperas da posse. Ele herdou não apenas a cadeira no Palácio do Planalto, mas também o problema histórico da inflação, que em fevereiro de 1986 já ultrapassava 12% ao mês e 200% ao ano, corroendo rapidamente o valor do dinheiro.
O Plano Cruzado: Otimismo Popular e o Papel dos "Fiscais do Sarney"
Em meio a esse cenário de urgência, nasceu o Plano Cruzado em fevereiro de 1986, um conjunto de medidas apelidadas de "pacote anti-inflação". Suas principais ações incluíram a troca da moeda (do Cruzeiro para o Cruzado), a criação do gatilho salarial para proteger o poder de compra, reformas fiscais e tributárias, e, de forma mais marcante, o congelamento de preços, serviços e salários.
O governo de Sarney lançou um apelo direto à população: "Você é meu fiscal!". Cidadãos comuns, munidos de caderninhos, tabelas e recortes de jornal, transformaram-se em "fiscais do Sarney", monitorando os preços nos supermercados e denunciando irregularidades. Essa iniciativa gerou um enorme engajamento popular e um pico de popularidade para o governo, com a inflação despencando de 15% em fevereiro para pouco mais de 1% em junho de 1986. A sensação era de que o poder de compra havia retornado, e o otimismo era tanto que o PMDB venceu em 22 dos 23 estados nas eleições daquele ano.
O Desabastecimento e o Fracasso dos Planos Sucessivos
No entanto, o sucesso inicial do Plano Cruzado foi efêmero e seus efeitos colaterais logo se tornaram evidentes. Com os preços congelados e os custos de produção em ascensão, produtores e comerciantes começaram a operar no prejuízo. Isso levou ao desaparecimento de produtos das prateleiras, filas extensas e o crescimento de um mercado clandestino que vendia a preços altíssimos. O "país das maravilhas" prometido começou a desmoronar.
O governo tentou corrigir os rumos com novos planos econômicos, como o Plano Cruzado 2 (novembro de 1986), o Plano Bresser (junho de 1987) e o Plano Verão (pouco tempo depois da Constituição de 1988), cada um com suas próprias medidas de descongelamento parcial, aumento de impostos, cortes de gastos e novas moedas (Cruzado Novo). Contudo, todos se mostraram ineficazes para resolver o problema estrutural da inflação, resultando em protestos, desabastecimento e uma crescente perda de confiança.
A Constituinte de 1987 e a Constituição Cidadã de 1988
Paralelamente à crise econômica, o Brasil vivia o processo crucial de sua redemocratização. Sarney convocou a Assembleia Nacional Constituinte em 1987, com a missão de elaborar uma nova Constituição para o país, substituindo a carta herdada do regime militar. Este foi um momento de intensa participação popular, com mais de 72.000 sugestões de cidadãos comuns e 12.000 de entidades, totalizando mais de 12 milhões de assinaturas em emendas populares.
A Constituição de 1988, apelidada de "Constituição Cidadã" por Ulisses Guimarães, foi promulgada em 5 de outubro de 1988 e trouxe avanços inéditos. Entre eles, destacam-se a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), o voto facultativo aos 16 anos, o direito à educação gratuita em todos os níveis, a liberdade de expressão, o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e da igualdade de gênero, e a ampliação dos direitos sociais e trabalhistas.
Apesar dessas conquistas, o processo constituinte não foi isento de tensões. Houve forte pressão e controvérsia em torno da extensão do mandato de Sarney para cinco anos, uma proposta aprovada por ampla maioria no Congresso, levantando denúncias de fisiologismo e compra de apoio.
O Desgaste do Governo e o Legado Controverso
A imagem do governo Sarney desmoronou junto com a economia. A aprovação, que era de 51% em 1985, caiu para apenas 9% no último ano de mandato. O governo foi hostilizado em manifestações, enfrentou casos de nepotismo, denúncias de uso indevido de verbas e escândalos de corrupção que culminaram na CPI da Corrupção e em um pedido de impeachment que foi arquivado.
Em 1989, o Brasil retornou às urnas para as primeiras eleições diretas para presidente desde 1960, com a reeleição proibida. Sarney ficou de fora da disputa, e o cenário se abriu para novos nomes, marcando o fim de uma era de transição turbulenta.
Em retrospecto, o governo Sarney é um paradoxo. Por um lado, foi o período em que a democracia foi formalmente restabelecida e a Constituição de 1988, um marco de direitos e participação, foi consolidada. Por outro, foi marcado por uma crise econômica profunda e pela ineficácia dos planos de estabilização, que deixaram um legado de desconfiança na economia e na política. A experiência do "fiscal do Sarney" permanece como um símbolo tanto do otimismo popular quanto da dificuldade de governar um país complexo em um momento de profunda mudança.